À minha querida,querida Mãe
Quando se é pequeno e novo e se tem a sorte de viver numa família feliz, ainda por cima com irmãos e irmãs, havia no outro regime, programas que se faziam nas férias longas do Verão que se vinham a desejar mesmo em tempos de aulas.
Quando se é pequeno e novo e se tem a sorte de viver numa família feliz, ainda por cima com irmãos e irmãs, havia no outro regime, programas que se faziam nas férias longas do Verão que se vinham a desejar mesmo em tempos de aulas.
Viagens a países aqui perto, a Espanha, França às vezes a
Itália mas como éramos 7 não se tornava confortável para o Pai que conduzia uma
carrinha VW pão-de-forma, fazer muitos quilómetros porque o volante era duro e
direito, apesar de o condutor ter 43 anos.
Servia de pretexto para pararmos em itinerários
pré-definidos e visitámos tudo quanto era interessante de ver pois como no
outro carro ia um motorista com os meus Avós e Bisavós maternos, a sabedoria
era muita, divertida para a nossa idade, interessante e premiada pela estadia nos
melhores hotéis e paradoros e nas capitais principais, em hotéis de 5 estrelas,
os mais conhecidos e com um serviço real.
Foram por isso tempos de meninice excepcionais, afastados de
qualquer passado anti-fascista até pela idade e criaram-nos até sermos mais
crescidos e entrarmos nas Universidades, uma visão da realidade completamente
deturpada do que era o país aonde vivíamos, a guerra no Ultramar, a censura, a PIDE,
a falta de liberdade de expressão, entre outros aspectos.
A propósito, ao Domingo eu ia no carro dos meu Avós,
conduzido pelo motorista, o Salvador que tinha umas fardas lindas abotoadas até
ao pescoço e com um boné de pala, e que nos levava ao Colégio todas as manhãs,
tendo ainda apanhado a minha Mãe novinha e fazendo a mesma coisa. Coitado, ao
princípio apanhou umas vomitadelas do meu irmão António e minhas, pois íamos
para o Beiral e era ele que fazia de Pai e Mãe e nós com o nervoso dos primeiros
dias, lá acalmávamos pela ternura e compreensão que ele sabia ter.
Esteve lá em casa uns 54 anos e quando mais tarde morreu,
fomos todos ao hospital, já ele deitado numa cama sem se poder mexer muito, mas
fizemos questão de lhe dar cada um beijo, a chorar como umas Madalenas e nessa altura
já eram os outros meus irmãos todos.
Era alguém da “Família” que desaparecia e que nos deixava
desolados e confrontados com a morte de quem muito gostávamos e a quem
moralmente muito devíamos na formação da nossa personalidade.
Vem isto a propósito de eu já ser rabiteso e a caminho da
nossa casa do Estoril aonde íamos ao Domingo passar a tarde, andar de
bicicleta, os Pais e Avós receberem amigos, o Salvador conduzia em silêncio e impecavelmente
fardado o Buick dos meus Avós. Eu já teria uns 8 anos ou talvez mesmo mais e já
tinha ouvido falar da PIDE que escutava e estava por todos os lados e tudo
quanto fosse contra o regime de Salazar era proibido e podia-se ser preso.
De repente, para provocar os meus Avós, eu largava: - o
Salazar é péssimo por não deixar as pessoas falar e ter espiões a ouvir tudo!
Levava uns valentes beliscões da minha Avó e o pavor
estendia-se aos demais com medo do Salvador poder denunciar-nos como comunistas…..imaginem,
mesmo tendo as suas ideias, que eram sobretudo as de gostar imenso da nossa
Família, alguma vez faria tal coisa…
Olhando para trás, fico pasmado de ainda em 1969 os motoristas
usarem bonés de pala e fardas de “príncipe” – o Salvador era um pessegão -, que
cada vez que os “grandes” saíam do carro vinha abrir a porta e tirava-o da
cabeça.
Trabalhando aos Sábados e aos Domingos – os Avós deixavam-no
ir para casa ao Sábado a seguir ao almoço – mas durante a semana ficava de
serviço para jantares fora, teatros, cinemas, etc
Foi por isso que tudo se modificou, mas devo dizer que desde
que comecei a usar a massa cinzenta, tudo isto causava em mim uma grande
impressão e muitas vezes chamava a atenção dos “patrões” para aliviar os
horários.
Para não falar das “criadas” quer em casa dos meus Avós quer
na nossa. Pelo menos 4 em cada uma e um criado que vinha servir os jantares
mais formais.
Dando um salto no tempo e no Continente, sou há mais de 35
anos, Cônsul-Geral Honorário da República da Serra Leôa em Portugal. É um país
que vos descreverei mais tarde, com habitantes africanos e a maioria muçulmana.
O meu livro vai-se chamar ISSA que é o nome de um dos cidadãos,
rapaz ainda novo, que me considera seu pai, por achar que o salvei. Também tratarei
de mais umas quantas personagens interessantes e cada uma com a sua história
africana e cá em Portugal, também.
O livro é sobre eles visto pela minha perspectiva, ajuda e
luta em prol da sua defesa, os hábitos e costumes. Nada tem a ver comigo, senão
eu ser o “menino” que cresci e me transformei num outro ser cuja vida, fóra
esta, teria muito que contar como a Nau Catrineta.
Prefácio escrito numa noite sem sono 2 dias antes do fim do
ano de 2019
O Autor
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