terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Pai, estamos pobres?

"Pai, estamos pobres?"
Estremeceu ao ouvir esta simples questão a qual, embora com apenas alguns laivos de racionalismo não apresentava nenhuma inocência. Perante um olhar taciturno mas simultaneamente despreocupado, ficou impotente para responder com o imediatismo necessário, tal como era hábito.
- Pobres? Sorriu engolindo em seco.
- De modo algum. Como poderíamos estar pobres se nunca fomos ricos?
Obviamente que para uma criança de cinco anos estava a ser confuso ver desaparecer alguns objectos da casa, diminuir o número de horas em que à noite se via televisão, entre outros cortes necessários para uma gestão eficaz, eram estas as palavras. O facto de ter saído do colégio deixando para trás amigos de sempre tinha sido difícil de ultrapassar, assim como a inexplicável presença dos pais em casa a horas que habitualmente seriam de trabalho. A simples pergunta "nunca mais me levaste ao teu trabalho" levou dias a ser respondida até que se conseguisse uma explicação possível, o que nunca aconteceu.
A palavra pobre soava como trovoada seca numa noite de Verão, como um trapezista a quem falha por centímetros a barra e verifica que sempre esteve a actuar sem rede. Foi assim que conseguiu acalmar uma mente exigente e traidora, sem escrúpulos, que não tinha feito soar as campainhas de alarme quando todo o baralho já se inclinava para um dos lados.
O despedimento foi como um murro no estômago. Na verdade o mundo estava a mudar, mas, que diabo, nunca pensou que fizesse dele bode espiatório. Fez e não foi meigo. A parca indemnização foi abatendo algumas dívidas e o subsidio dava apenas para uma refeição diária. Apenas a filha usufruía de todas as que tinha direito, sem saber no entanto que a última - também questionada pela sua hora tardia - era já fruto de caridade.
Sim, estavam pobres. Envergonhadamente pobres.
"Mãe, estamos pobres?"
Com um sorriso que só as mães sabem exprimir, afagou-lhe o cabelo rebelde e acenou com a cabeça. Estavam na realidade pobres.
Já não conseguia contar o tempo passado no campo de refugiados, sob lei marcial e uma guerra sem tréguas. Vira ser-lhe tirado o único filho ainda vivo e guardou sem gemidos a dor proveniente de violações sucessivas. Sabia que jamais iria esquecer, mas essa não era a prioridade no momento. Sobreviver era a única chama que lhe alimentara o espírito nas longas noites de bruma.
Sabia por rumores aqui e ali que o filho permanecia vivo. Mas o campo era enorme e os movimentos toldados pelos vários grupos armados.
Por uns tempos pensou que o fim tinha chegado. Luas passaram sem uma mão de arroz ou uma colher de água. A insalubridade instalou-se e a vergonha desceu o seu manto negro, levando-a à doença. Desnutrida, foi-lhe colocado o sinal redondo vermelho à volta do pescoço : prioridade mínima. Adormeceu.
Por esses dias o movimento no campo alterou-se e começaram a ouvir-se mais gritos que gemidos, mais velas que escuridão. Retiraram-na do canto onde se encontrava tolhida e colocaram-na a soro. Gradualmente alguma força voltava aos seus braços e as mãos já conseguiam suster a pouca água de arroz que lhe forneciam duas vezes ao dia. Os voluntários da paz tornaram-se os seus mais íntimos confidentes.
Dois anos depois, o campo era já uma miragem dolorosa mas passada. Um casebre de duas pequenas divisões onde coabitava com o filho entretanto recuperado, fizeram voltar o brilho a uns olhos castanhos um dia quase corroídos pelos insectos.
Sorrindo, afagou mais uma vez os cabelos do pequeno. Sim, estamos finalmente pobres.
JCL

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