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Pai, estamos pobres?
"Pai, estamos pobres?"
Estremeceu ao ouvir esta simples questão a qual, embora com apenas
alguns laivos de racionalismo não apresentava nenhuma inocência. Perante
um olhar taciturno mas simultaneamente despreocupado, ficou impotente
para responder com o imediatismo necessário, tal como era hábito.
- Pobres? Sorriu engolindo em seco.
- De modo algum. Como poderíamos estar pobres se nunca fomos ricos?
Obviamente que para uma criança de cinco anos estava a ser confuso ver
desaparecer alguns objectos da casa, diminuir o número de horas em que à
noite se via televisão, entre outros cortes necessários para uma gestão
eficaz, eram estas as palavras. O facto de ter saído do colégio
deixando para trás amigos de sempre tinha sido difícil de ultrapassar,
assim como a inexplicável presença dos pais em casa a horas que
habitualmente seriam de trabalho. A simples pergunta "nunca mais me
levaste ao teu trabalho" levou dias a ser respondida até que se
conseguisse uma explicação possível, o que nunca aconteceu.
A
palavra pobre soava como trovoada seca numa noite de Verão, como um
trapezista a quem falha por centímetros a barra e verifica que sempre
esteve a actuar sem rede. Foi assim que conseguiu acalmar uma mente
exigente e traidora, sem escrúpulos, que não tinha feito soar as
campainhas de alarme quando todo o baralho já se inclinava para um dos
lados.
O despedimento foi como um murro no estômago. Na verdade o
mundo estava a mudar, mas, que diabo, nunca pensou que fizesse dele bode
espiatório. Fez e não foi meigo. A parca indemnização foi abatendo
algumas dívidas e o subsidio dava apenas para uma refeição diária.
Apenas a filha usufruía de todas as que tinha direito, sem saber no
entanto que a última - também questionada pela sua hora tardia - era já
fruto de caridade.
Sim, estavam pobres. Envergonhadamente pobres.
"Mãe, estamos pobres?"
Com um sorriso que só as mães sabem exprimir, afagou-lhe o cabelo rebelde e acenou com a cabeça. Estavam na realidade pobres.
Já não conseguia contar o tempo passado no campo de refugiados, sob lei
marcial e uma guerra sem tréguas. Vira ser-lhe tirado o único filho
ainda vivo e guardou sem gemidos a dor proveniente de violações
sucessivas. Sabia que jamais iria esquecer, mas essa não era a
prioridade no momento. Sobreviver era a única chama que lhe alimentara o
espírito nas longas noites de bruma.
Sabia por rumores aqui e ali
que o filho permanecia vivo. Mas o campo era enorme e os movimentos
toldados pelos vários grupos armados.
Por uns tempos pensou que o
fim tinha chegado. Luas passaram sem uma mão de arroz ou uma colher de
água. A insalubridade instalou-se e a vergonha desceu o seu manto negro,
levando-a à doença. Desnutrida, foi-lhe colocado o sinal redondo
vermelho à volta do pescoço : prioridade mínima. Adormeceu.
Por
esses dias o movimento no campo alterou-se e começaram a ouvir-se mais
gritos que gemidos, mais velas que escuridão. Retiraram-na do canto onde
se encontrava tolhida e colocaram-na a soro. Gradualmente alguma força
voltava aos seus braços e as mãos já conseguiam suster a pouca água de
arroz que lhe forneciam duas vezes ao dia. Os voluntários da paz
tornaram-se os seus mais íntimos confidentes.
Dois anos depois, o
campo era já uma miragem dolorosa mas passada. Um casebre de duas
pequenas divisões onde coabitava com o filho entretanto recuperado,
fizeram voltar o brilho a uns olhos castanhos um dia quase corroídos
pelos insectos.
Sorrindo, afagou mais uma vez os cabelos do pequeno. Sim, estamos finalmente pobres.
JCL
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