terça-feira, 29 de novembro de 2011
Há vida para além do futebol
O salazarismo serviu-se do futebol como emblema das virtudes do regime. Do futebol, do fado e de Fátima. Há um pouco de exagero nesta afirmação, que fez caminho anos a fio. Agora, então, com esta esquizofrenia quase generalizada, que regime serve o futebol? Há umas semanas, Rui Santos (sobrinho de um grande jornalista, Vítor Santos, que foi chefe de redacção de "A Bola") dizia, na SIC Notícias, da dimensão excessiva que o futebol adquirira na vida portuguesa. E advertia que o jogo não era tudo: os problemas nacionais eram mais imperiosos.
É evidente: o futebol converteu-se num negócio fabuloso, com milhões de milhões a trocar o passo a todas as probidades. Onde há dinheiro aos montes há corrupção correspondente, no-lo diz a sabedoria dos povos. Assistimos, além disso, ao súbito nascimento mediático de uma corja de analfabetos, com "mais tempo de antena do que qualquer outra pessoa de outra qualquer actividade" [Rui Santos, SIC Notícias].
Julgo saber que o comentador da SIC alimenta muitos verdetes. Não é importante: a ciumeira e a inveja sempre se associaram contra quem escapa às regras da arte. A verdade é que o abuso de espaço e de tempo que as televisões atribuem ao futebol e adjacências chega a ser doentio. Que dizer das respostas dos jogadores às extraordinárias perguntas dos "jornalistas" de plantão? O festival de cretinice não pertence, em sistema de exclusividade, aos primeiros: o amorfismo cabe, por inteiro, aos segundos. Parece haver um temor reverencial ao mundo dos negócios futebolísticos. Ninguém, ou quase, se atreve a revelar o que subjaz a tudo aquilo. E a famosa "transparência" não passa de um vidro muito opaco. Os vencimentos são manipulados, os privilégios de dirigentes, subdirigentes e pequenos vassalos são zelosamente omitidos.
Cansa-me, a mim e a muitos mais portugueses, a importância quase sagrada que se concede a um penalty que não chegou a ser; a fúria causada por um encontrão; as ameaças de morte a um árbitro por ter apitado mal. Há três diários de futebol, com tiragens que justificam, afinal, a sua existência, e nem um, um sequer, assume posições críticas acerca destas e de outras poucas-vergonhas. Durante a fase mais acesa do Apito Dourado, e ante o espectral silêncio daquela imprensa, perguntei a um camarada meu, importante redactor de um importante jornal "desportivo" o porquê daquele comportamento. Numa metáfora rigorosa respondeu: "O medo guarda a vinha." Outro, disse-me que o assunto pertencia à área da Imprensa "generalista." E eu fiquei-me, entre o assombro e a perplexidade.
Claro que a insistência doentia, quase hora a hora, no futebol, nos comentários, nas previsões, nas análises remove do português comum qualquer reflexão acerca da sua própria situação social. As agendas dos jornais, os alinhamentos e as opções das televisões e das rádios merecem uma vigilância crítica dos próprios profissionais. O que não existe. Manifesta-se uma total subserviência aos imperativos do que dizem ser as exigências do público. É uma velha pecha e uma desculpa fatigante de quem abdicou do dever mais sagrado da comunicação social: informar e esclarecer para formar.
Apesar de tudo, das limitações da época antiga, das censuras e dos constrangimentos, nem sempre as coisas atingiram níveis tão surpreendentemente baixos. "A Bola", por exemplo, que reuniu um admirável conjunto de redactores, abriu um precedente extraordinário. Cândido de Oliveira, homem excepcional, convidou o crítico e ensaísta literário João Gaspar Simões a colaborar no, então, julgo, bissemanário. Na última página de "A Bola", Gaspar Simões escrevia um rodapé intitulado "Cartas a um Jovem Desportista que se Interessa pela Cultura." Muitos dos rapazes desse tempo (eu incluído) aprendemos mais literatura, arte, cinema, teatro, do que o ensino oficial praticado. Mais tarde, Carlos Pinhão, estilista do idioma e carácter incomum, convidou escritores a colaborar no jornal, dando continuidade a uma grande tradição. Lá estava eu. De novo e, posteriormente, chamado por Vítor Serpa, voltei a publicar crónicas no, então, já diário.
Havia a preocupação ética e cívica de não tornar o futebol num sistema de exclusividade informativo. E as próprias secções do grande jornal não falavam, apenas, naquele desporto. Alfredo Farinha (falecido há dias), Aurélio Márcio, Vítor Santos e Pinhão, mas também Carlos Miranda, Santos Neves, Cruz Santos, outros, fizeram de "A Bola" um órgão distintivo na Imprensa portuguesa. A preocupação com a escrita associava-se a um forte empenho moral.
Tudo se alterou substancialmente na urgência de se estabelecer um compromisso com aquilo que se presumia (e presume) ser o que o leitor deseja. É um problema preocupante, mas que segue as linhas gerais da Imprensa. A ausência de relações culturais, o receio de se perder tiragens, a inexistência de uma forte atitude crítica, o cuidado temeroso e extremo com que se escreve sobre temas "escaldantes", ou, simplesmente, não se escreve - transformou os jornais "desportivos" em folhas quase amorfas, nas quais se sobrelevam os aspectos fúteis em detrimento das grandes questões.
Há vida para além do futebol.
Baptista Bastos
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