sábado, 27 de março de 2010

A minha entrevista a Pu Jie - II parte


(veja-se o meu anterior posting com o título "o meu encontro com Pu-Jie o irmão mais novo do Imperador da China ") bem como a parte I .

Perguntei-lhe se queria falar-me da sua infância e percurso até hoje, pois só conhecíamos a versão das memórias do irmão, Pu Yi.

- Desde muito jovem partilhei as lições de inglês com o meu irmão e assim que podíamos, fugíamos para os jardins da Cidade Proibida aonde brincávamos e fazíamos jogos, escapando ao estrito controlo e guarda dos tutores e eunucos. Aprendemos juntos a nadar, a remar e a usar trajes ingleses, tudo isto debaixo das instruções do nosso tutor britânico Johnston – disse com bonomia.

- O Imperador morreu em 1967, mas eu, um ano mais novo do que ele, vivo e trabalho em Pequim. A minha casa de 16 quartos, num hutong, tem uma porta como se fosse um arco em tijolos vermelhos e os beirados do telhado têm telhas pintadas em azul e verde. Tenho um pequeno pátio com algumas árvores não muito grandes, rodeadas por canteiros com flores. Os quartos dão para o pátio de todos os lados – acrescentou.

À entrada reparei que era pequeno de estatura, frágil – de certa maneira fazendo lembrar as fotografias do seu irmão, mas no entanto rápido e vigoroso nos movimentos.

Estava vestido com um leve “anorak”, calças azuis tipicamente chinesas e com uma espécie de chinelos. Aparentava estar mais confiante com a minha presença e com um constante e acolhedor sorriso.

- Estudei no Japão na minha mocidade e casei-me com uma japonesa, que era parente do Imperador do Japão. Tive duas filhas, ambas casadas com nobres japoneses, tendo uma delas sido assassinada, e a outra vive em Tóquio e tenho 5 netos. Trato do meu jardim e dos meus gatos – continuou.

- Tenho na minha casa, para além de móveis simples e confortáveis de bambu, alguns quadros com retratos a que dou alguma relevância pois são, uns de notáveis políticos chineses, e um especialmente que mostra um evento no topo da minha carreira – disse Pu Jie.

Perguntei-lhe se me podia dizer de quem eram e ele confessou-me que eram de Mao e de Hua, bem como de Zhou Enlai, a figura mais amada na China após a morte de Mao pela abertura e desenvolvimento que tinha prodigalizado ao povo chinês.

- Mas a fotografia de que mais me orgulho é de 1979, na 5ª Assembleia do Congresso do Povo: no meio de centenas de delegados, aparece a minha cara. O Presidente Zhou foi nosso amigo, de mim e do Imperador e a minha casa foi-me por ele atribuída, quando saí por ordem dele, da prisão em 1961- acrescentou.

Questionei-o sobre quantos anos tinham os dois passado na prisão e respondeu-me que para cima de 15 em vários estabelecimentos prisionais:

- Quando os Russos entraram na Manchúria em 1945, fomos ambos levados para paragens inóspitas e perdidas na Sibéria profunda, aonde ficámos 5 anos.

Interessei-me por saber se ele ou alguns dos membros da nobreza chinesa durante e depois das prisões, torturas e sofrimento teriam sido reprogramados pelos comunistas soviéticos.

Pu Jie riu-se e respondeu-me que os guardas das diferentes prisões não eram bons professores:

– Tinham o hábito de roubar o nosso simbólico pocket money de cada mês e apesar das condições não serem muito más, a comida razoável, o nosso pensamento manteve-se imutável. Continuámos a acreditar que era o dever da nossa vida, restaurarmos a dinastia Qing. Só quando voltámos para a China é que as autoridades prisionais foram gradualmente capazes de alterar as nossas atitudes. Em vez de nos aniquilarem e aos restantes aristocratas, os comunistas prenderam-nos e fomos ensinados a olharmo-nos como cidadãos vulgares, para podermos ser usados pela propaganda.

- Nas prisões chinesas aprendemos a ser auto-suficientes. O meu irmão Pu Yi tinha muitas dificuldades pois, como Imperador, nunca tinha mexido um dedo – não lhe era permitido vestir-se, não podia atar sequer os atilhos dos seus sapatos.

- Aprendemos também o princípio de servir o povo pelo trabalho em várias tarefas manuais. Tivemos que rever a nossa fé Budista. Para mim, que nunca fui muito devoto, não foi um grande problema. Mas para Pu Yi, foi diferente. Imagine que achou muito revoltante ter que matar moscas durante a campanha contra a peste aonde andou de máquina desinfectante às costas, e de facto, nunca perdeu realmente as suas crenças – acrescentou.

- Considerando que tivemos uma firme e persistente reeducação, foram-nos, no entanto, permitidos alguns privilégios. Podíamos jogar mah jong (cuja prática tinha sido banida no resto da China) e na alimentação tínhamos uma melhor qualidade de comida do que para os restantes prisioneiros.

Perguntei-lhe o que fizeram depois da sua libertação, pois tinha lido que para Pu Jie o perdão veio um ano mais tarde do que o do Imperador:

- Comecei por passar um ano como jardineiro no meu próprio Palácio, mas depois trabalhámos ambos nos Arquivos Nacionais como especialistas na nossa dinastia Qing e do Senhor da Guerra ( Manchus que governaram a China desde 1644 até 1911) e sobre os períodos de ocupação japonesa. Pela nossa educação, contactos que mantivemos no passado, e experiências internacionais, éramos considerados como as pessoas mais indicadas para recuperar esta parte da História, antes que se perdesse. Com este tipo de trabalho, recolhendo e classificando informações, recordando reminiscências do nosso passado e da nossa família, estivemos ocupados por largos anos e eu próprio ainda continuo a fazê-lo.

Não era possível resistir a perguntar-lhe sobre uma tentativa de comparação entre esses tempos e agora:

- Eu tinha nessa altura 10 anos – respondeu Pu Jie – quando fui levado pela primeira vez para me encontrar com o Imperador. Não fazia a menor ideia de que iria encontrar o meu irmão. Imaginava que iria encontrar um velho com uma barba branca, com uma coroa na cabeça. Fiquei muito admirado quando constatei que o Imperador era uma criança tal como eu.

- Achei natural a minha posição no Palácio Imperial e nem sequer a questionei. Pareceu-me correcto que devesse devotar as minhas forças ao serviço da restauração da dinastia Qing. A mesma ideia manteve-se inalterável no meu coração através dos anos, durante o período na Manchúria, depois da derrota do Japão, e durante a prisão na Rússia. Quando, depois da Libertação da Rússia, voltámos para a China, eu era como o cavalo que não podia ser forçado a beber água. Mas quando o cavalo tem sede é só preciso levá-lo até à fonte de água e ele bebe! Gradualmente acabei por ter consciência dos meus erros fundamentais.

Questionei-o sobre o queria dizer com o reconhecimento dos erros: seria uma consequência da reeducação e de lavagens ao cérebro:

- Em 1930 o Imperador e eu colaborámos com os invasores Japoneses e por isso fomos presos e considerados prisioneiros de guerra pelo regime comunista Chinês. Exprimi mais tarde e após a minha libertação a minha gratidão ao Governo Chinês e declarei-me contente com a minha nova vida. Que mais poderia ter feito. Era uma gota no oceano!

- No passado fui uma gota de água desviada do bom leito do oceano, e senti-me submerso no mar de mais de um bilião de cidadãos chineses.
Os tempos do passado foram um sonho e só pensava em mim e na restauração da dinastia Qing, mas agora sinto-me feliz e o meu objectivo é fazer o que possa em benefício do povo.

- Estive na prisão com muitos prisioneiros japoneses de guerra quando foram libertados no Nordeste da China. Muitos choraram por terem sido levados a pensar que a prisão era o lugar do seu re-nascimento! Para eles os guardas da prisão eram como os seus pais.

A nossa conversa estava a chegar ao fim e à laia de despedida, perguntei-lhe como antevia o futuro da China.

- Neste momento na China todos se sentem mais tranquilos desde a queda do “Bando dos Quatro”. Podem exprimir mais os seus pensamentos, no entanto prevejo muitas dificuldades, mas a confiança do povo no seu futuro é uma força importante – finalizou.

Pu Jie, morreu em Pequim com 87 anos.

Quando regressei ao meu escritório, passei os dias seguintes a organizar estes dados e ao escrevê-los lembrei-me desta frase: “o que amarelece por aí quando não existires!”

MNA

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