segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Foi ao quinto telefonema


Certa noite não consegui pregar olho. No entanto, a minha insónia não me deixava cair na inutilidade do nada-fazer, e por isso tomei as minhas precauções. Armado com um copo de leite e uma fatia de bolo de chocolate, peguei num lápis, num bloco de papel e no telefone.

Escolhi 9 dígitos ao acaso e liguei para um número. Atenderam-me com uma voz ensonada. Era uma mulher. Eu expliquei que estava "com insónias, e por isso liguei para conversar até me dar o sono, se não se importasse". Ela praguejou em bom português, ameaçou chamar a polícia no caso de eu persistir e desligou o telefone de forma rude e abrupta. Não percebo que mal lhe fiz. No entanto escrevia todos os números no papel. Para mais tarde recordar, caso necessitasse uma vez mais de combater a insónia.

A segunda "vítima" foi um homem. Este atendeu e ouvi música de fundo. Ele informou-me que aquele número era de um bar. "Que tipo de bar?", ao que obtive uma resposta "O tipo de bar que a esta hora está às moscas". Perguntei-lhe se estava muito ocupado, pelo que me deu uma resposta engraçada. "Depende", disse, "Ganhei algum concurso?". Eu respondi negativamente, mas expliquei-lhe a minha situação. Ele retorquiu educadamente, dizendo que lhe acontecia frequentemente e que sim, é verdade, era algo muito chato para acontecer a alguém. Ele perguntou-me se eu já tinha contado carneiros, pelo que respondi que sim e que, aliás, já os tinha mandado saltar a cerca novamente e desta vez abati-os. Ele proferiu um "hmm, pois" em aprovação. Perguntou-me se eu já tinha ido ver qualquer coisa desinteressante na televisão, mas eu já tinha tentado isso noutra ocasião, mas sem efeito. Perguntou-me também se eu já tinha tomado comprimidos para me ajudar, mas eu também não queria essas coisas. Ele deu-me bastantes sugestões: marijuana, chás, bater fortemente com a cabeça na parede até perder os sentidos, apanhar uma grande bebedeira à moda antiga, ir acordar e seduzir uma vizinha qualquer, entre muitas outras coisas. Nenhuma me convenceu. Perguntei-lhe "o que é que costuma fazer quando tem insónias?". A resposta dele foi inesperada: "Vou ao Multibanco, levanto uns euros e depois vou às meninas". Resultava sempre, dizia ele. No entanto, eu não conhecia nenhuma casa de alterne por perto e, mesmo que conhecesse, já não estava para ir vestir-me para sair, ainda para mais levantar dinheiro àquelas horas da noite. Não obstante, agradeci-lhe o tempo e a ajuda, despedindo-me cordialmente e pousando o auscultador.

Ao terceiro telefonema, surpreendi uma mulher. Ela pensou por instantes que eu era o marido que finalmente descobrira que ela de facto tinha um amante, que era o melhor amigo (cujo número eu acabara de marcar). Ela suspirou de alívio, e eu resumi, uma vez mais, o meu problema. Ela e o amante (o melhor amigo do marido) tiveram a ideia de ter sexo enquanto eu ouvia, desde que eu não me importasse de pagar vários minutos de chamada até me fartar. Eu lembro-me de pensar, na altura, que quanto muito ainda acabava era mais desperto e meio excitado. Não obstante, acedi, pois estava disposto a tudo, mas não tive muita sorte. Eles não fizeram barulho nenhum, só ouvi o que parecia ser a cama a ranger e uns gemidos ocasionais. Ainda por cima demoraram menos de cinco minutos, pelo que ela veio ao telefone e inquiriu "está lá?". "Sim, minha senhora, ainda estou aqui...já acabaram?". "Já sim", diz-me ela, "então não adormeceu?". "Não, acho que este seu plano não foi o melhor". Desejei-lhe boa sorte para a sua relação adúltera (pois se uma alma tão simpática traía o marido era porque ele é que era o canalha, certamente) e desliguei.

Foi no quarto telefonema que, sem querer, liguei para um atendedor de chamadas. "Ligou para casa do Fernando e da Maria. De momento não podemos atender, pelo que agradecemos se deixar a sua mensagem após o beep." (BEEP!) Acontece que desde há uns minutos que eu me lembrara de ir reler um livro qualquer, pelo que disquei novamente o número deste casal e comecei a ler o primeiro capítulo de "Guerra e Paz". No entanto, não adormeci. Desliguei a meio do segundo capítulo, pois não estava a ter sucesso nenhum. Aquele casal, contudo, ficou com uma bela dose de boa literatura para escutar no dia seguinte.

Quando me preparava para escolher aleatoriamente outro número, eis que surge em meu redor uma melga. Aquele barulho do seu motor biológico irritava-me e ainda perdi uns dez minutos até a matar. Aparecia e desaparecia na semi-escuridão do quarto como o próprio Diabo. A minha fúria e desprezo pelo insecto apenas serviram para que ficasse mais desperto. Raios partam as melgas, rogar-lhes-ei pragas até morrer.

Foi o quinto telefonema que me fez dormir. Liguei um número que já não estava atribuído, pelo que adormeci a ouvir a voz da mulher da gravação. Foi fantástico, e fiquei bastante feliz por ver, na manhã seguinte, que tinha habilmente registado o número desta nova pessoa que já não existia no meu mundo, mas que me deixara um presente de valor incalculável para as minhas noites de insónia.